Trata-se de um texto interessantíssimo aos operadores do direito, especialmente os que atuam junto aos Juizados Especiais. Tomei a liberdade de replicá-lo em meu site por entender ser um ótimo texto.
Link original: http://blex.com.br/index.php/2009/cases/427
Por Daniel Fábio Jacob Nogueira
Até pouco tempo atrás as Turmas Recursais dos Juizados Especiais Estaduais eram órgãos jurisdicionais que, essencialmente, não se sujeitavam a qualquer instância revisora de suas decisões de mérito.
Isso porque, por desenho constitucional, não cabe Recurso Especial das decisões das Turmas Recursais. Cabe Recurso Extraordinário para o STF, mas é raríssimo que exista uma violação constitucional direta que autorize o manejo desse instrumento. Em sua esmagadora maioria, as questões postas à discussão em Juizados Especiais são de cunho infraconstitucional.
Também se assentou jurisprudência nos Tribunais Superiores de que não cabe Mandado de Segurança ao Tribunal de Justiça do Estado contra a decisão de mérito das Turmas Recursais. O Remédio Heróico só cabe nessa hipótese quando se aduz que a competência para o feito é da Justiça Comum, mas a Turma Recursal se nega a reconhecer esse fato.
Portanto, sem instância revisora da matéria de direito federal, as Turmas Recursais estavam livres para decidir como bem queriam. Mas graças a uma recente decisão do STF, isso mudou.
O problema apresentado pode parecer irrelevante. O juizado tem – via de regra – competência para feitos de até 40 salários mínimos e uma análise mais superficial leva à conclusão que não faz nenhum sentido importunar as instâncias superiores com esses pequenos feitos. Esta é uma visão míope do problema.
Acontece é que é muito comum que empresas respondam por centenas e até milhares de casos idênticos propostos em juizados. Digamos que uma empresa constrói um modelo de negócios baseado em dispositivo explícito da lei federal infraconstitucional. Por conta desse modelo de negócios, 100 consumidores ingressam em juízo, alegando que tal conduta seria ilegítima, e que a partir de uma interpretação principiológica do Código de Defesa do Consumidor, a citada lei federal não pode ser aplicada. Os casos são litigados em 1ª instância, e todos são recorridos às Turmas Recursais. Metade das Turmas do Amazonas entendem que a conduta é legal, diante do autorizativo expresso da lei federal. A outra metade aplica o entendimento ridículo de que o CDC autoriza o judiciário a ignorar todo o resto do direito positivo brasileiro, ainda que a outra lei seja mais nova e mais específica que o Código.
O cliente então te pergunta: O que ele faz é ou não é legal? Ele deve continuar? A resposta do advogado não é muito satisfatória: Depende da turma recursal, e prepare-se para perder 50% dos feitos, e ganhar outros 50%.
Claramente, a falta de uniformização nos Juizados Estaduais cria um grande problema na administração da Justiça e o problema é mais acentuado para empresas com atuação nacional, que tem que lidar com inúmeras Turmas Recursais Brasil afora, cada uma decidindo do jeito que quer.
Podemos citar também outros casos em que a falta da via recursal ao STJ teria sido problemática caso as Turmas mantivessem a decisão do juiz de 1º grau. No primeiro caso um cliente estava sofrendo constrição patrimonial de R$ 815.000,00 por conta de um caso que tramitava em juizado especial. Noutro caso, o julgador de 1º grau disse com todas as letras que reconhecia que o STJ impunha juros e correção ao dano moral desde a condenação, mas ele queria retroagir essa condenação ao suposto evento danoso. Em ambos os caso revertemos o problema na seara das Turmas, mas se não tivéssemos conseguido teríamos que pensar fora da caixa para procurar uma solução heterodoxa à questão.
Nos Juizados Especiais Federais existe a figura de uma instância quase-especial que é a Turma de Uniformização, cuja missão é exatamente de uniformizar a interpretação da lei federal em todo os sistema federal de pequenos feitos. Na esfera dos Juizados Estaduais, tramita no Congresso Nacional proposta legislativa de criação de órgão semelhante , mas o fato é que hoje esse órgão não existe.
Ou melhor, não existia.
O Supremo Tribunal Federal finalmente enxergou a dimensão do problema. Vislumbrou tudo isso que acabei de descrever e chegou à conclusão que é um absurdo causado por um vácuo jurídico. Mas o Supremo fez melhor: desenhou uma engenhosa solução para o problema.
Ao decidir os Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário 571572 o Supremo Tribunal Federal decidiu que o STJ tem missão constitucional de garantir uniformidade da aplicação da lei federal infra-constitucional em todo o país. Assim, por mais que não caiba Recurso Especial das decisões das Turmas, se essas decisões violarem a jurisprudência do STJ quanto à lei federal, a parte pode propor Reclamação perante o STJ para garantir a uniformização.
É bem verdade que os ministros do Supremo : i) em essência legislaram uma solução por conta da omissão legislativa, fazendo dessa reclamação um sucedâneo recursal um verdadeiro fruto do Direito Pretoriano; e ii) alargaram os contornos dantes conhecidos da Reclamação. Antes dessa decisão, a Reclamação se prestava para lidar com casos pontuais em que havia usurpação de autoridade do Tribunal, e não como forma de debater matérias jurídicas.
No entanto acho que a decisão do Supremo, imperfeita como for, teve o louvável propósito de criar uma solução pragmática para um problema real que assolava empresas de todo o Brasil, e que dantes não tinha qualquer solução positivada. E por isso que aplaudo a decisão como exemplo de aplicação prática de pensamento lateral. O STF encarou o problema de modo criativo, e por conta disso deu aos jurisdicionados uma forma de combater a autocracia das Turmas Recursais.
A decisão ainda não foi publicada. Quando for, a disponibilizaremos na íntegra aqui no bLex.
Por Daniel Fábio Jacob Nogueira em 08/09/2009